quarta-feira, junho 11, 2008

Na Hora do Almoço

Meio-dia de um dia qualquer. Não lembro que dia isso aconteceu, mas aconteceu num junho incerto dum ano qualquer. Local: um refeitório. Em minha frente, pessoas famintas aguardam impacientemente a fila. A ressaca é grande, o dia frio. Eu, tonto. Fome. Há uma revolução tsunâmica dentro do meu estomago, as tripas estava revoltas, elas davam nó. Há algo diferente no ar. É o cheiro do almoço. A fila, um pouco grande, um tanto mais atrapalhada, demora. A fome aperta. Penso no dia maçante que continuará dali para frente. Como todos os últimos dias: corrido e desgastante: é parada de forno.

Salada: beterraba e um pouco de alface e cenoura. Não sou um vegetariano inveterado. Na verdade, quanto menos salada, melhor. Pudera eu viver de carnes e alimentos ditos "maus", a vida estaria boa. Carne, arroz e feijão, eis o básico da vida. Como aos poucos. Na mesa ao lado pessoas falam de um show sertanejo qualquer que não me interessa e também não é relevante ao relato. O ar pesa ao redor. Há como uma bigorna etérea, difusa que pressiona todos ali para o chão.

Comer é um exercício de paciência, pois se encontra dentro de outro exercício maior: viver. Sabendo que a vida acaba e é curta, temos pressa. Mas nossa pressa é inócua, justificamo-la, ou pelo menos tentamos justificá-la, com nossas tarefas inúteis, nosso dia-a-dia tosco. O desejo sobre-humano de fazer tudo rápido para, após, saborearmos a vida é prova irrefutável de nossa presunção perante o tempo que nos controla. Ou nos abarca. A nossa pressa é inútil; como é inútil essa conjectura sobre o tempo.

A prolixidade não é comumente uma de minhas melhores características. Essa digressão acima sobre a pressa e o tempo não tem a menor ligação com o tema do relato. É, como dizem os expertos, a famosa licença poética, que autores do mundo todo usam e abusam para inserir em suas obras suas opiniões sobre a vida, sobre os absurdos e outros temas eternos, como o tempo. Se pararmos para analisar, não interfere em nada na trama do texto. Não digo que não sejam interessantes, algumas com certeza o são, mas não fariam a menor falta. É o que o povo de língua inglesa chama de sausage fulfilling e nós, de língua portuguesa, de "abarrotamento de carne suína em tripa delgada". Ou, simplesmente, encher lingüiça. Faz-se necessária, doravante, a redução de tais artimanhas literárias questionáveis. Voltemos ao relato.

Mais ou menos umas duas mesas em diagonal, à minha frente, estava sentada uma mulher. Calculo que entre 29 e 30 anos. Cabelos um pouco acima dos ombros, loiros. Rosto singelo, de feições finas. Olhar compenetrado. Pele branca ou rósea, porém bronzeada. Bem vestida. Calmamente comia, sem a pressa dos tolos e néscios.

Não a havia percebido ainda. Sentei-me à mesa, bebi o refrigerante que ignoro o sabor (é mais poético falar "ignoro" que "não lembro") e comecei a devorar meu desjejum do meio-dia. Quando estava entretido com o bife e sua feroz luta com meus talheres, olho ao lado, como todas as pessoas que olham aos lados sem nenhuma pretensão de nada, apenas pelo puro e simples fato de olhar e exercitar nosso inerente desejo de voyeurismo. Eis que me deparo com essa mulher. Desvio o olhar, por instinto ou por alguma outra explicação que ignoro (tá bem, eu não sei, não sei!). Nossos olhos haviam se encontrado.

Volto à comida. É comum em nossa rotina esbarrarmos com olhares alheios. E nada melhor que a expressão esbarrar, porque há mesmo um contato físico que resulta, depois da esbarrada, num distanciamento do olhar. Como se uma bola fosse um olhar e quando o pé (o outro olhar) esbarra, a bola vai em outra direção. Dessa forma meu olhar foi empurrado para o lado. E voltei a comer.
Depois de um tempo, já devidamente esquecido o fato, distraidamente acabo por olhar novamente para aquela mulher. E ela me fitava novamente, contudo, dessa vez, como quem segura uma porta empurrada por uma multidão, meu olhar esbarrou e se deteve. Infindáveis dois segundos devem ter sido o tempo de contato. Dessa vez é ela quem cede, e volta a comer em sua mansidão de mar em recifes, olhando aleatoriamente para os lados.


Enquanto termino o almoço, olho rapidamente para ela, evitando outra esbarrada, que poderia ser fatal para um de nós. Ela começa a sobremesa. Eu não tenho tempo para sobremesas, tenho pressa. Quando me levanto, noto que ela me olha mais uma vez. Poderia ser a mulher perfeita, poderia ser a mulher que todos procuram. Poderia ser um engano. Ela poderia estar olhando para alguém ao meu lado. Poderia...talvez pudéssemos.

Vagarosamente saio de minha mesa em direção ao caixa, prestando atenção meio de soslaio para ela.

Nenhum olhar.

Passo a catraca. Lentamente me dirijo à saída, pensando em todo o acontecido dos últimos minutos. O tempo de um almoço apressado foi o suficiente para me fazer pensar no caso por alguns dias seguidos, seus olhares, sua face, suas inescrutáveis intenções. Antes de sair, viro o rosto uma última vez torcendo, pedindo a algum deus que a fizesse retornar, pela última vez, seu olhar, que consagraria nossa cumplicidade e eternizaria o momento como uma lenda, um possível conto de fadas para gerações futuras ou, ao menos, uma boa lembrança para nossas velhices. Ela comia, imperturbável, sua sobremesa.

Assim Relatou Zaratustra.