terça-feira, outubro 02, 2007

A fada-madrinha, O pogobol gigantesco e EU.

Meu nascimento se deu à beira-mar, lá por onde o vento sopra à noroeste, com a candura dos mentirosos que sucumbem a força da brisa. Vim duma família desertora da guerra civil (onde já se viu tanta mendacidade e sandez?). Meu pescoço estrala toda vez que cochilo, é um tique de nascença. "É coisa do demo!": Disse-me uma cartomante, uma vez. Mas não acreditei nela (até porque nunca conheci nenhuma). Porém, ela insiste até hoje com seu veneno no leve sopro do luar.
Um dia, à mesa do almoço onde se serviam vinho e pão, meu irmão avistou um disco voador. Éramos recém-nascidos, não mais de trinta centímetros cada um. O disco era enorme, parecia um pogobol gigante. Ele - meu irmão - disse, como que se estivesse possuído por um santo demônio ou um demônio do bem (ou, sabe-se lá)( Onde?)( Lá.):
Though thy crest be shorn and shaven, your art of using fantasies doesn't deceive me, ancient raven and ghastly grim wandering above the nightly shore.*
Pus-me pensativo e estranhei, pois nós dois não falávamos inglês. Na verdade, nem sabíamos que aquele idioma era inglês. Só me dei conta ontem, num sonho. Meu irmão disse ao extraterrestre, de urano:
-Somos inocentes!
O ET replicou:
-Yo no pregunté nada. Be quiet.**
Ficamos assustados. Nunca nos deparamos antes com um ET em nossa frente, ainda mais um que confrontasse as nossas falas. Trememos as pernas e cagamos nas calças.
-Allém más, son dos mijones y dos cagones. - acrescentou o ser extraterreno - Yo solamente quiero preguntarlos cual és el camino más proximo para los anillos de Saturno. I won't do bad to you. ***
Daí eu, medrosamente, respondi que desconhecia e lhe disse ainda que procurasse a lua e falasse com São Jorge que esse saberia direcioná-lo melhor. Após voarmos em bicicletas na frente da lua, nos despedimos e ele nos deu uma amostra grátis do raio desintegrador caso nos chocássemos com alguma bruxa voadora de vassouras.
Hoje acordei com o pressentimento de que não sou daqui. Na verdade eu sou consciente de que pressentimentos são apenas idiotices mendazes que a gente acha que pode acontecer. Pressentimentos têm cinqüenta por cento de probabilidade de não se concretizarem, como tudo na vida. É uma espécie de superstição nonsense. Minha fada madrinha disse que minha superstição é nonsense. Retruquei e disse-lhe que não tenho superstição e que não sei o que é nonsense. Disse-lhe que vivo alheio às crenças fúteis dos tolos e néscios e que minha mente é superior, tão superior, mas tão superior que talvez não exista mesmo Deus: EU SOU DEUS. Minha fada-madrinha, séria como nunca a tinha visto antes, disse-me:
-Tolo dos tolos, néscio dos néscios, bosta dos bostas. Tu és um engodo. Tu és um equívoco. Tu és como um balão: por maior que sejas e que te enchas, sempre estarás vazio por dentro.
Pensei por quase um segundo e respondi-lhe:
-Fada-madrinha, profunda foste tu em tão sábias palavras. Tão profunda como um intestino delgado: cheio de peido e de merda. Falas cheias de altivez como um sapo inflado e para mim estourar sapos é uma honesta distração.
A Fada-madrinha irou-se, tudo em volta enegreceu-se e como num remoinho de ventos, anatematizou-me:
-Histrião! Mentecapto! Pacóvio! Desgraçado e burro! Deveríeis compreender não haver indulto ou perdão por apostrofar tua fada-madrinha! Larga-te do meu largo lago, pois largar-te-ei a partir de hoje e tu lagarteará pelo resto da tua vida, enquanto não te redimires durante teu caminho! Errarás teu português para toda vida e sempre de geração em geração! Sucumba ante minha maldição por toda a eternidade!
E a fada-madrinha se foi.
Desde esse dia senti-me só. Erro o português freqüentemente, contudo jamais percatei-me se errei ou não. Falta-me companhia. Sigo só pelas escuras vielas da vida, não mais procuro a felicidade, que é uma mentira e a mentira é a salvação. Ontem, em meu sonho, o ET me encontrou e me reduziu ao tamanho de um neutrinho. Perdi a Fada-madrinha, perdi minha princesa, perdi o meu cavalo e a minha espada, como uma árvore no outono perde a cor. Pero, en la primavera la vieja árbol vuelve sus colores.
Eu não.
Desde aquele dia, sou monocromático, igual a TV antiga do meu avô, em frente à sua poltrona mais dileta, cheia de pulgas e joaninhas. Como todas as joaninhas coloridas que eu criava em meus dias de infância, verdes, amarelas, vermelhas com bolas multicoloridas em suas asas. As joaninhas se foram. A fada-madrinha se foi. Eu hei de ir algum dia. Por enquanto me vou, por esta trilha amarga e angustiante que me amaldiçoa cada vez mais com sua solitária agressividade. Sou um erro. Enquanto não descobrir onde fui o erro, não terei como livrar-me de minha sina.
Empertiguei-me, olhei para o meu irmão ao fundo de minhas lembranças e dei-lhe adeus.
O ET me acompanha ao longe, em seu pogobol gigantesco.
Assim Lembrava Zaratustra.
*Embora tua crista seja tosquiada e raspada, tua arte de usar fantasias não me engana, corvo antigo e horrivelmente horrendo que vaga sobre a orla noturna.
** fique quieto
*** Não vos farei mal.